sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Sandman



E hoje, quadrinhos... ou sobre, bem, vocês entenderam....
Tender, é com você:

Nem sempre falarei de filmes e séries aqui, às vezes falarei também de quadrinhos, livros e coisas diversas que me vierem na cabeça. Filmes e séries serão feitos com mais freqüência, já que trabalho na área de audiovisual e estudei sobre cinema e TV durante algum tempo e são os temas que tenho mais conhecimento. Porém, sou um amante de outras formas de arte, inclusive os quadrinhos.

Sim meus caros, quadrinhos também são arte, por isso esqueçam a época dos gibis que hoje a nona arte possui histórias que competem pau a pau com qualquer filme por aí. Uma dessas obras é Sandman, que pra mim é a obra prima dos quadrinhos. Se alguém vira do nada e me pergunta: "Qual a melhor história em quadrinhos que você já leu"? Minha resposta com certeza será "Sandman", os motivos? É o que explicarei ao longo do texto de hoje.




Pra começo de conversa, Sandman é um personagem da Era de Ouro da DC e era membro da Sociedade da Justiça da América. Na época o personagem era a alcunha de Wesley Dodds, um homem sem superpoderes que vestia sobretudo, uma máscara de gás e disparava gás do sono em criminosos.
Para quem não sabe, a Era de Ouro nos quadrinhos ocorreu na década de 30, quando começaram a ser lançadas as primeiras histórias em quadrinhos fora dos jornais de grande tiragem nos EUA. O sucesso de vendagem da editora se deu principalmente por causa da primeira história do Superman, lançada na Action Comics #1 em 1938. Na cola desse sucesso apareceram outros personagens como Mulher Maravilha, Batman e a tal da Sociedade da Justiça da qual o Sandman original fazia parte.



O tempo foi passando, personagens foram aparecendo e uma série de censuras, além da falta de interesse por um personagem tão secundário, fizeram com que Sandman fosse jogado de escanteio, aparecendo ocasionalmente aqui e ali. Até que nos anos 80-90, histórias mais adultas começaram a ser publicadas pela DC, que inclusive lançou o selo Vertigo para diferenciar as histórias usuais das histórias mais pesadas. Nesta empreitada, a empresa começou a importar artistas britânicos, que já na época eram conhecidos pelos seus talentos em histórias que envolviam magia, mistério, terror e ficção. Foi nessa época que artistas como Alan Moore (sim, farei um especial sobre ele no futuro), Dave Gibbons, Grant Morrison, Garth Ennis e Neil Gaiman começaram a atuar no mercado americano.

Neil Gaiman

Quando se fala em quadrinhos para adultos, não se deve esquecer o Monstro do Pântano, que foi o precursor de todo o negócio. O Monstro do Pântano também era um personagem meio jogado de escanteio no panteão de heróis da DC e foi revitalizado por ninguém mais, ninguém menos que Alan Moore. Com histórias soturnas, cheias de camadas dramáticas, um dos personagens apresentados em Monstro do Pântano foi Constantine (sim, sim, um especial, eu já sei). O sucesso dessas histórias fez com que a editora apostasse em outras revistas com pegada mais adulta, como Watchmen, o próprio Constantine em Hellblazer e Sandman.

João Constantino

Já no selo Vertigo, Sandman até teve algumas histórias publicadas ainda com o herói em sua versão original, ou seja, mostrando Wesley Dodds combatendo o crime com sua arma de fumaça do sono. Apesar de serem histórias mais sombrias, com várias influências de detetives noir, o personagem ainda derrapava e não conseguia conversar plenamente com o público.

Eis que entra em cena Neil Gaiman, com uma ideia inovadora para remodelar o personagem, tendo como base a história de Morfeu, o deus grego dos sonhos e o mito de Sandman, um ser que possui uma areia mágica que, quando assoprada nos olhos das pessoas, faz com que elas durmam. Desse conceito nasceu Sandman, uma revista que apresenta Morfeu como um dos Perpétuos (que conta também com Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio), que são seus irmãos e estão entre os seres mais poderosos do Universo.


A história começa mostrando Sandman aprisionado por um mago, mas ele consegue escapar e já de início se percebe que a história possui profundidade. Os personagens aqui não são bons ou maus, mas sim cinzentos, com objetivos próprios e personalidades muito peculiares. Sendo assim, descobre-se que Morfeu precisa reencontrar alguns objetos perdidos para retomar todo seu poder.

Nessas primeiras edições percebe-se também o esmero e a beleza dedicas às capas, magistralmente ilustradas por Dave McKean, outro artista britânico. Cada capa é uma obra de arte, cheia de pequenos detalhes que dão dicas do que irá acontecer no decorrer da história, mas sem ser óbvia a ponto de dar um spoiler.


  


Nesses primeiros instantes, vemos também Morfeus interagindo com outros personagens da Editora, como Constantine, Doutor Destino, Wesley Dodds, o Sandman humano e até mesmo Lúcifer, que de tão carismático estrelou sua própria história (que esse ano inspirou um piloto horrível para uma série de TV).
Ao longo das edições Morfeu se mostra um personagem cheio de nuances, ou seja. apesar de todo seu suposto poder como Perpétuo, ele é quase um humano. Com mudanças de humor repentina, ora ele está furioso, ora ele está introspectivo, ora melancólico, ora heróico, enfim, é quase um bipolar. Dono de um reino chamado Sonhar, Morfeu precisa consertar uma série de distúrbios causados em consequência de sua prisão, além de ter que resgatar seus objetos de poder.



Um desses objetos está no Inferno, o que obriga Morfeu a descer ao reino de Lúcifer. Ao chegar lá, descobre que para resgatar o objeto perdido, ele precisa enfrentar um demônio chamado Choronzon num jogo de palavras que é um dos melhores diálogos que já li em uma HQ na minha vida.



Outro ponto importantíssimo na obra é o relacionamento entre Morfeu e seus irmãos, principalmente a Morte. Dona de um humor irônico, a Morte também é um personagem que se destaca, pois apesar de ser representada aparentando ser mais nova que Morfeu, ela é sua irmã mais velha. Isso cria cenas impagáveis entre os dois e isso é o que tem de melhor em uma mídia impressa, como é o caso dos quadrinhos onde você pode absorver cada detalhe com bastante tempo e perceber a poesia que compõe o quadro.

Como exemplo, em determinado momento há um encontro entre Morfeu e a Morte em uma praça cheia de pombos. Os dois começam a conversar, a Morte faz uns trocadilhos, mas a melancolia de Morfeu e sua cabeça dura fazem com que a irmã lhe dê um esporro. Minha gente, se a relação simbólica pomba = reflexão em busca de paz de espírito x conflitos de emoções = esporro não é arte, não sei o que é.



Muitas vezes Morfeu erra e erra feio, boa parte da história mostra ele tentando corrigir esses erros, numa tentativa de se redimir. Isso mostra cada vez mais seu lado mais humano, coisa que os outros Perpétuos não demonstram com muita frequência, com exceção de suas irmãs Morte e Delírio. Morte na verdade possui uma compreensão da humanidade, tendo inclusive que encarnar na Terra de tempos em tempos para sentir na pele o que é morrer. Já Delírio é um personagem que demonstra muitas verdade que nem sempre queremos saber ou pontos de vista que nem sempre queremos aceitar. Destino, o mais velho de todos os irmãos, é o mais enigmático, prevendo muitas coisas que acontecem ao longo da trama.



Todos os Perpétuos, apesar de serem muito poderosos, pouco utilizam de seus poderes e dedicam muita parte do tempo para cuidar de seus reinos. Todos possuem dualidade, sendo assim, Sonho age no plano do imaginário e do subconsciente, mas também pode moldar a realidade.

Delírio é a capacidade de criar coisas abstratas e lúdicas, além de representar a própria loucura. Destino é determinista e preso em seu próprio dever, sendo acorrentado a um livro.
Destruição desistiu de seu posto, alegando que a humanidade se destrói sozinha, sem precisar dele agindo em seu reino.
Desejo e Desespero são gêmeos, mostrando que muitas vezes um desejo não conquistado ou muito difícil de se conseguir pode te levar ao delírio.
Morte é responsável por levar as almas dos mortes, mas também traz para a Terra as almas dos recém-nascidos.



Na obra, percebe-se também muita influência musical, principalmente do rock. Morfeu possui um visual claramente inspirado em Robert Smith, vocalista do The Cure. Há muitas referências musicais, algumas em diálogos, algumas tocando em algum rádio de fundo, algumas feitas de forma bem subjetiva. As referências não param por aí e transitam pola teologia, cinema e literatura. Para se ter uma noção, um dos personagens secundários que ditará até mesmo o encerramento da série é William Shakespeare, que possui uma relação muito singular com Morfeu.



Assunto constante na obra, os sonhos muitas vezes se confundem com a realidade. Há personagens que escapam do reino do Sonhar, há personagens que querem reencontrar seus antigos sonhos, há personagens em sono eterno. Morfeu vive transitando entre sonhos, reinos e realidades, sempre tentando restabelecer a ordem no Sonhar.
A vulnerabilidade do personagem é a chave de tudo, sempre mostrando os pontos fracos do personagem e a forma como ele consegue tornar isso ao seu favor. Por isso, cada ação dele possui uma reação e personagens que aparecem nas primeiras revistas ressurgem em momentos posteriores, forçando o leitor a prestar atenção na história ou até mesmo a voltar a ler antigas edições, outra vantagem da mídia impressa.

Nessas indas e vindas, Morfeu enfrenta maníacos, pesadelos perdidos, deuses, demônios e até recebe a chave do Inferno, quando Lúcifer decide abandonar o reino das trevas. Nem sempre Morfeu possui solução ou resposta para todos os problemas que enfrenta e vai aprendendo, junto com o leitor, que tomar mais uma atitude impensada terá repercussões futuras. Após terminar as 75 edições, você com certeza terá participado de uma jornada cativante, que te fará amar cada um daqueles personagens apresentados na obra de uma maneira única e é exatamente isso o que faz de Sandman ser tão memorável.



Para nossa sorte, uma nova minissérie foi lançada recentemente , mas é importante ressaltar que, na primeira vez que a série original foi impressa no Brasil, não era tão fácil de ser encontrada, resquício de como as nerdices eram tratadas com desdém na época.

Hoje em dia é sucesso, é cult, é coisa nerd com diversas encadernações de luxo. No meu caso, só fui ter contato com Sandman já na fase adulta, baixando scans da internet e depois comprando as revistas. Sorte a de vocês jovens padawans, que podem acompanhar ininterruptamente, inclusive com apontamentos do autor, essa obra máxima dos quadrinhos.

Boa leitura e bons sonhos...





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