quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O DESESPERO É AMARELO

por Hal 
 

"O tolo acha que tudo controla por ser filho de Deus"



Isso faz muito, muito tempo acho que era mil novecentos e noventa e três. Fazia um colegial técnico de processamento de dados que ficava em outra cidade, mais ou menos a uns dois ônibus de distância da minha casa.
Era meio o meio da semana e eu tinha ido até lá entregar uma papelada na secretaria. A memória agora falha para os detalhes. Não importa.
O importante que que fiz o que precisava e fui ao ponto esperar o primeiro ônibus, foi quando senti a primeira pontada de um levante intestinal.
Não dei muita bola ao caso, afinal sou senhor do meu corpo e em mais ou menos uns noventa minutos estaria em casa.

 

Eu sou, eu posso

Mais uma pontada e uma leve cólica...


Por um momento o primeiro ônibus pareceu demorar mais do que o normal.
Enfim chegou. Como era praxe estava lotado, e fui em pé na barriga do monstro metálico amarelo ziguezagueado pela cidade.
A cada freada uma estocada, desconforto crescente que me fazia temer cada sinal vermelho.
Era evidente que uma revolta estava para eclodir dentro de mim. Eu era a França e o povo oprimido começava a convulsionar preste a tomar a bastilha.
Foi quando pela primeira vez na vida eu tomei consciência do meu esfíncter! Um filme passou pela minha cabeça enquanto eu lutava contra o borbulhar iminente dentro de mim.
 

Meu Esfíncter! Meu irmão de armas!

Apesar de sempre ignorado nunca me abandonou! Nunca fugiu de suas obrigações!
Perdão meu amigo. Perdão por ter lhe ignorado por tanto tempo. Lute bravamente!


O expresso cata-louco

“Evacuação repetida de fezes líquidas ou não moldadas” (dicionário médico)

 

Desci do primeiro ônibus certo de que a grande batalha ainda estava por vir. Olhei no meu relógio fazendo as contas. Quarenta e cinco minutos mais 8 minutos até em casa e eu cheguei uns dez minutos adiantado então... Dor... Pontada... Sensação de catástrofe.


Era eu um rei destronado!

Estava a sessenta quilômetros do meu reino e de meu trono!
Naquele momento cada movimento que eu fazia era seguido de dor e de uma sensação terrível de que meu esfíncter estava prestes a fraquejar. A revolução havia começado!


Foram um dos dez minutos mais longos da minha vida, quando chegou aquele que iria me salvar de um destino vexatório. Meus olhos quase encheram de lágrimas ao ver ônibus estacionar.
Normalmente me jogaria na frente e lutaria por um lugar dentro do ônibus, mas na situação em que me encontrava cada movimento era um movimento rumo ao abismo.


Assim deixei todos entrarem e corajosamente fiquei em pé, mas perto da porta, ao menor sinal de perigo tinha intenção de me jogar por elas, seria a coisa nobre a se fazer.
Olhei para o relógio ainda fazendo minhas contas, o trajeto tinha quarenta e cinco minutos então, pelas dores e a pressão que mantinha para deixar tudo dentro, se nada mais falhasse eu conseguira!
Mas me esqueci de um detalhe...
Na região este tipo de ônibus interurbano é conhecido como “cata-louco”, o que basicamente significa que ele vai parar para qualquer desgraçado que dê o sinal, na cidade ou na pista. Felizmente tinham que cumprir horário.
E Deus do céu!  Cumpram o horário.

 


Pague para entrar. Reze para sair

“A vida é um balé cósmico cheio de passos treinados à exaustão”

 

Quem já lutou contra um desarranjo fugaz iminente, com certeza conhece “O Método” . Eu explico:
O método, varia de pessoa para pessoa e situação para situação, consiste basicamente entrar em sintonia com o ambiente e seu corpo fora de controle, de maneira a manter a dignidade.
O Método então pode ser um bater suave de pernas, um balançar de mãos, a entoação mental de mantras ou um cantarolar sem sentido.


O importante é fazer o corpo focar em outra coisa.


Por quarenta e cinco minutos explorei todas as facetas Do Método enquanto tentava manter o que estava dentro... dentro!
Amaldiçoei cada freada, cada uma para pegar mais um ser humano infeliz, cada segundo perdido.
Então, finalmente cheguei ao ponto final. A linha de chegada! A vitória próxima!



Via Crucis

"Não importa o adversário, você sempre lutará pela vitória"

 

A porta do coletivo finalmente se abriu e sentia o doce ar da liberdade após uma viagem torturante, ainda mantinha a dignidade intacta.
Desci devagar os degraus e parei por um segundo me despedindo mentalmente da besta de metal.

Foi então que...

Senti! Pela primeira vez depois de uma hora de hercúleo esforço, meu esfíncter fraquejou!
Por uma fração de segundo o guerreiro se rendera, mas fui mais rápido! Inspirando fortemente o ar para dentro o travei! Me travei! Travei tudo!


Então todo desespero interior tomou forma por uma gota de suor que escorreu do meu rosto.
Tentei me mover e o esfíncter fraquejou novamente. Parei.
Espero um segundo, um passo. Certo, foi quase agora. Parei novamente. Travei a respiração. Mais um passo...
Seis quarteirões me separavam de meu reino, do meu trono! Mas qualquer movimento maior do que extremamente delicado seria fatal. Eu não tinha tempo e não podia correr.

Passinho, passinho, trava esfíncter, pára. Passinho, passinho, trava esfíncter, pára...

E chego ao portão de casa.


 


A queda da Bastilha!

"À minha frente se erguia aquele majestoso portão. Dentro os tesouros com que mais sonhava me esperavam"


Olhei para o portão e... Mentira! A poesia havia morrido! Eu havia morrido! Sem tempo irmãos!
Abri o portão correndo, deixando-o escancarado atrás de mim. Só tive reflexo o suficiente para fechar a porta da sala.
A cidade estava tomada! As torres! Os portões ruíram! Meu esfíncter dava seu último suspiro. Voei casa a dentro: corredor, banheiro e fechei a porta. Minhas pernas tremiam enquanto levantando a tampa do vaso tentava desesperadamente abrir minha cinta, precisava arriar as calças! Precisava. Venci! Eu venci! Eu...


...eu perdi... 



Com as calças quase na altura dos joelhos meu esfíncter, exausto, cedeu. A Bastilha havia caído.
Equivalente à massa tomando o poder na França aristocrática, minha cueca semi-baixada encheu-se da revoltosa horda a qual lutei nos últimos noventa minutos.

Não havia mais dor, não havia mais medo.

Só o cheiro da derrota.


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